O DOENTE POR TRÁS DA DOENÇA
Parte-se do princípio de que uma
pessoa em busca de cuidados médicos está debilitada física e emocionalmente,
seja qual for o motivo. Ao médico, cabe a escuta atenta e sensível, um dos
caminhos para a definição do diagnóstico adequado e, consequentemente, do
melhor tratamento. Aparentemente, duas óbvias colocações, mas o dia a dia dos
consultórios tem exemplos de sobra para mostrar quão frágil e difícil pode se
tornar a interação médico-paciente. Se há algumas décadas essa relação era
confortavelmente próxima, hoje uma conjugação de fatores lança dúvidas sobre
sua verdadeira natureza. O contingente de pacientes se multiplica, assim como a
adoção de tecnologias cada vez mais sofisticadas. O profissional médico também
mudou, moldado por um modelo de saúde que valoriza a superespecialização. E o
preço da saúde, diante de tanta novidade, há tempos se mantém em alta. É o que
ajuda a alimentar a crítica de que muitos planos de saúde somam um componente a
mais para aumentar o desconforto na prática clínica e o distanciamento entre
médicos e pacientes.
A pergunta que não quer calar é:
como achar saídas para melhorar essa relação tão delicada na rotina dos
consultórios?
Nada de reinventar a roda.
Afinal, os caminhos estão dados pela semiologia médica – e não é de hoje.
A palavra vem do grego semeîon, sinal, e dessa associação nasce
a semiologia médica como área dedicada ao estudo dos sinais e sintomas dos
pacientes, a partir da coleta e interpretação dos principais achados clínicos.
Galeno (139 – 199 d.C) aparece como a mais antiga referência à semiologia
médica, ainda no Império Romano.
A Universidade Federal Fluminense
destaca uma frase de Carl Jung para sintetizar aquilo que é central na proposta
da disciplina: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas, ao
tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”.
A essência é a anamnese detalhada
e o posterior exame clínico. O modo como se examina o paciente, como se palpa,
se ausculta ou se percute complementam esse universo, rodeado de simbologias e
aberto a inúmeras formas de interpretação.
Assim, a semiologia médica ainda
encontra o desafio cotidiano de traduzir as queixas do paciente em uma hipótese
diagnóstica ou em um diagnóstico previsto nos códigos internacionais. “Não é
fácil interpretar os signos da fala humana. As palavras estão carregadas de
sentido, mas como abrir as portas e janelas que levam ao coração das palavras?
Como descobrir os sentidos que
essas palavras fazem para as pessoas? (FRANCO, S.G., Hermenêutica e Psicanálise
na Obra de Paul Ricoeur, São Paulo: Loyola, 1995, p.12)
Mais do que oferecer ao médico
informações sobre a doença, a semiologia abre caminhos para desvendar questões
que afligem o paciente e afetam sua qualidade de vida. É a partir da narrativa
do doente que será possível traçar a análise que leva ao diagnóstico.
Naturalmente, exercitar essa
escuta cautelosa pressupõe o “olho no olho”, o estabelecimento de uma relação
de respeito e confiança mútua.
Mas a dificuldade de expressão,
somada ao medo, à fragilidade do momento e a toda a carga emocional do
paciente, por vezes dificulta o diagnóstico.
Cabe ao médico assumir um
posicionamento adequado. Dedicar atenção especial aos medos e anseios do
paciente e de seus familiares servirá para deixá-los mais confortáveis para
expor suas dúvidas e preocupações. O resultado é um ambiente mais favorável
para que pacientes e médicos coloquem mais claramente as informações a respeito
da doença e das perspectivas de tratamento.
Uma das questões relacionadas à
semiologia é se essa empatia do médico e a capacidade de estabelecer uma
relação estreita com o paciente podem ser ensinadas. E, justamente por não
haver uma regra ou resposta exata, o alerta é que a dificuldade de comunicação
pode se tornar um dos maiores desafios da prática clínica.
As diferenças socioculturais
entre médico e paciente e a multiplicidade de formas com que diferentes
pacientes expressam a mesma doença também devem ser levadas em consideração,
segundo Rilva Lopes de Sousa-Muñoz, médica generalista e professora de
semiologia médica da Universidade Federal da Paraíba: “Reflexo social e
corporal não são um processo exclusivamente biológico”, ressalta, reconhecendo
também o reducionismo do modelo biomédico diante da complexidade da experiência
de adoecimento.
A disciplina da semiologia médica
procura desenvolver no aluno essa habilidade de interagir e se comunicar, dando
início à verdadeira interação médico-paciente. “É necessário haver maior
treinamento nas escolas médicas e até na residência. O médico precisa saber
como dar notícias ruins ou até um diagnóstico potencialmente fatal”, pontua
Lucíola de Barros Pontes, oncologista do Hospital Israelita Albert Einstein
(HIAE).
Em sua formação, o profissional é
treinado para tentar resolver problemas e tratar das pessoas, mas quando a
doença apresenta um grau maior de complexidade, como acontece com o câncer,
pode faltar certa aptidão para conduzir um diálogo franco e aberto. Para
preencher essa lacuna, os cursos de educação médica continuada têm apontado a
importância de revalorizar essa ligação com o paciente.
É claro que, ao lado do conteúdo
aprendido na formação e da aptidão pessoal, a experiência conquistada ao longo
da carreira conta pontos preciosos.
É o que garante o veterano
Humberto Torloni, do A.C. Camargo Cancer Center. “O médico sabe tudo sobre a
doença, mas o doente às vezes pode ensinar em uma frase algo que não foi
aprendido em nenhum livro”, ensina.
Câncer na atenção primária
Não é novidade que o cenário da
oncologia ainda é cercado de muito estigma. A escritora e ativista
norte-americana Susan Sontag, que morreu de câncer em 2004, iluminou a questão
com o clássico Doença como Metáfora, comparando patologias que ao longo da
história humana despertaram igualmente reações “metafóricas”. “As fantasias
inspiradas pela tuberculose no século XIX e pelo câncer hoje são reações a uma
enfermidade considerada intratável e caprichosa – ou seja, uma enfermidade que
não se compreende – numa época em que a premissa central da medicina é que
todas as doenças podem ser curadas” (S.Sontag, Doença como Metáfora/Aids e suas
metáforas, Cia de Bolso, 2007).
Ao apelar para as fantasias e
para o universo simbólico, fica mais fácil compreender a complexidade em torno
das questões de saúde e doença. “A doença é a zona noturna da vida, uma
cidadania mais onerosa. Todos que nascem têm dupla cidadania, no reino dos sãos
e no reino dos doentes”, escreveu Sontag.
Receber o diagnóstico de câncer,
mesmo que de um tumor plenamente curável, pode marcar o ingresso nessa zona
noturna, assumir proporções quase dantescas e afetar a maioria dos pacientes de
modo devastador. Não é fácil deixar de lado o estigma e as conotações negativas
associadas ao câncer.
Nesse momento, encontrar um
médico apto a amparar o paciente tende a tornar tudo mais superável.
E é bom lembrar que, na maior
parte das vezes, a primeira queixa do paciente é levada ao médico generalista.
É nesse momento que uma escuta atenta e um bom exame físico podem fazer toda a
diferença.
Na oncologia, o diagnóstico
precoce ajuda a derrubar o estigma de doença incurável e demonstrar que hoje
muitos tumores são passíveis de tratamento, de cronificação e até mesmo de
cura.
Atenta à importância da detecção
precoce, a oncologista Lucíola, do HIAE, destaca aspectos que devem ser
valorizados também entre os médicos generalistas. Um bom ponto de partida é
buscar a história clínica com base em algum sintoma em evolução, como perda de
peso e falta de apetite.
Antecedentes pessoais,
comorbidades, hábitos, vícios, faixa etária, estado geral do paciente e
profissão são algumas das informações relevantes, que segundo a especialista
devem ser sempre levantadas na anamnese.
“No exame clínico, em geral, a
presença de febre, anemia, icterícia e ínguas é sempre importante”, explica
Felipe Roitberg, oncologista do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo
(Icesp), que lembra ainda outro importante sinal de alerta.
“A dor é sempre extremamente
importante e é preciso dar atenção no sentido de aliviá-la com a maior
brevidade possível”, recomenda.
Consciente do papel da atenção
primária no diagnóstico precoce do câncer, o Grupo de Estudos em Semiologia
Médica (GESME) da Universidade Federal da Paraíba preparou um rico material de
apoio. O trabalho argumenta que os sinais de alarme para diagnósticos de câncer
são mais acessíveis ao generalista e fornece bons exemplos, como sangramento
retal, hematúria, disfagia ou hemoptise, além de um miniguia para a detecção do
melanoma maligno. O material desenvolvido
pelo GESME sublinha a importância da semiologia baseada em evidência,
recomendando sempre valorizar os achados de maior acurácia diagnóstica e
integrar as melhores evidências da literatura aos dados da anamnese e do exame
físico. O material está disponível na internet no endereço http://goo.gl
/hlOd0G.
Anamnese ideal
Como aplicar a semiologia no
modelo de saúde do século XXI, quando se cobra do médico eficiência mas,
contraditoriamente, se exige uma produtividade constantemente estimulada por
contratos ou convênios?
Com tantas especificidades e
detalhes a serem buscados, o tempo das consultas é, por vezes, um dos inimigos
da aplicação da semiologia.
É possível mensurar o tempo ideal
a ser dedicado a uma pessoa acometida por medo ou dor, diante da experiência do
adoecimento?
Muitos médicos estimam que o
tempo médio ideal de uma consulta varia entre 40 minutos e uma hora, dependendo
das necessidades individuais de cada paciente e sua família. O recomendado
seria a primeira consulta durar o tempo necessário para conquistar o paciente e
ganhar a sua confiança.
Mas, infelizmente, a prática
ainda se distancia do cenário ideal.
Rogério de Sousa Oliveira passou
pela experiência negativa de receber um diagnóstico de mieloma múltiplo, em
novembro de 2011. Oliveira e sua esposa se viram naquele momento diante do que
descrevem como uma “linha de produção de pacientes”, em uma consulta que não
chegou nem perto dos 30 minutos. Ele saiu sem respostas para seus
questionamentos sobre a doença – e os procedimentos a serem seguidos foram
ignorados. “No dia em que ele me passou o diagnóstico, só faltou colocar uma
vela na minha mão”, conta. Mas a história de Rogério tem final feliz. Com a
ajuda da IMF, a Fundação Internacional do Mieloma Múltiplo, Oliveira acabou
encontrando outros médicos, recebeu todos os esclarecimentos sobre a doença e
hoje mantém um blog para ecoar a mensagem da IMF e ajudar a divulgar o mieloma
múltiplo numa grande rede de apoio e informação (http://goo.gl/KsMYXl).
Tecnologia: protagonista ou figurante?
O paciente oncológico sabe que
exemplos bons e ruins da prática médica sempre vão existir. Mas será que ele
está satisfeito com o tratamento que recebe?
A pergunta foi lançada pelo
Instituto Oncoguia, em uma enquete pela internet, e até o final da primeira
quinzena de dezembro registrava uma participação maior de pacientes atendidos
pela saúde suplementar em relação a pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS).
A boa notícia é que quase 80% se
dizem satisfeitos com o tratamento, o que não significa dizer que tudo é um mar
de rosas. As críticas existem – e não chegam a surpreender. Parcela dos
pacientes de câncer gostaria de receber mais explicação sobre a sua doença e se
ressente da falta de atenção por parte do médico. O pouco tempo dedicado às
consultas também aparece entre as maiores queixas, revelando que o contato
pessoal com o oncologista costuma ser de 15 a 30 minutos.
Mas, apesar de compartilhar do
cenário de dificuldades que é comum a toda área da saúde, a oncologia costuma
ser apontada como um exemplo de boas práticas.
De acordo com estimativas da área
de Medicina Interna e Semiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp,
mais de 90% dos casos oncológicos são atendidos com carinho e bastante atenção.
“Ainda bem que existem
especialistas mais treinados para abordar o paciente de câncer”, diz Jamiro da
Silva Wanderley, coordenador do programa de semiologia da Unicamp. O médico
acredita que o fator mais limitante das conversas e da aproximação com o
paciente seja – acredite – a tecnologia. “As consultas foram encurtadas pela
facilidade com que os exames são solicitados hoje em dia, para que se ganhe
tempo”, critica ele. Significa que a técnica acabou se sobrepondo ao contato
humano, e é tempo de repensar essa equação.
No Facebook, o perfil intitulado
“Semiologia médica” traz alguns depoimentos ilustrativos que corroboram essa
visão: “(...) Há 30 anos, ainda existia uma forte ligação entre o médico e o
paciente, quando famílias inteiras referenciavam-se em um único profissional
capaz de responder a maioria das demandas clínicas. Hoje, vivemos uma crise
dessa relação. A cada dia, surgem um novo avanço tecnológico e um novo
tratamento. A especialidade avança com mais rapidez que o generalista. Somado a
isso, valoriza-se cada vez mais o superespecialista. E existe, agora, uma
grande confiança social na máquina, em detrimento do ser humano”.
Sem dúvida, os exames de
diagnósticos por imagem disponíveis atualmente, bem como a biologia molecular,
são aliados valiosos para a prática médica, do diagnóstico ao tratamento.
Roitberg, do Icesp, reconhece esse valor, mas reforça a opinião do professor da
Unicamp, enfatizando que a tecnologia deve ser uma parceira, sem que o médico
seja escravizado por ela.
Alguns pesquisadores da área
chegam a afirmar que vivemos uma era de transição entre dois tipos de medicina:
da hipocrática, que lançou a pedra angular, para a medicina hipertecnológica. E
sugerem que o método lançado pelo norte-americano Abrahan Flexner, em 1910,
pode ajudar a compreender a raiz do problema, ao propor a divisão do ensino
médico entre os ciclos básico e clínico. Para os críticos, a chamada doutrina
flexneriana foi um passo a caminho da fragmentação do ensino médico e um
estímulo à especialização precoce. Agora, o grande desafio é a busca do
equilíbrio.
Em síntese, fica a lição de que
uma boa formação em semiologia e em propedêutica, que é a clínica da
investigação, tem vantagens que somam pontos preciosos à relação
médico-paciente e ainda podem contribuir para racionalizar os custos da saúde,
evitando pedidos de exames desnecessários e dispendiosos.
Mesmo que existam profissionais
que enxergam as variáveis tempo e produtividade como inversamente
proporcionais, o alicerce de uma boa relação entre médico e paciente baseia-se
no contato visual, direto e prolongado, insubstituível por qualquer forma de
especialização profissional ou tecnologia. E se na anamnese a semiologia abre
caminhos
para um diagnóstico bem-feito, no
seguimento do tratamento ela tem papel fundamental.
É por meio das suas expressões
que o doente vai indicar reações medicamentosas ou mesmo mostrar seu desejo em
relação à continuidade da assistência, por exemplo. Em resposta, o médico
poderá assistir o paciente no manejo dos possíveis efeitos tóxicos e pautar o caráter
do tratamento.
(“O doente por trás da doença”,
de autoria das jornalistas Milena Tutumi e Valéria Hartt, publicada na Revista
Onco& - Oncologia para todas as especialidades, Edição janeiro/fevereiro de
2014).
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