18 de mar. de 2014

O DOENTE POR TRÁS DA DOENÇA



O DOENTE POR TRÁS DA DOENÇA

Parte-se do princípio de que uma pessoa em busca de cuidados médicos está debilitada física e emocionalmente, seja qual for o motivo. Ao médico, cabe a escuta atenta e sensível, um dos caminhos para a definição do diagnóstico adequado e, consequentemente, do melhor tratamento. Aparentemente, duas óbvias colocações, mas o dia a dia dos consultórios tem exemplos de sobra para mostrar quão frágil e difícil pode se tornar a interação médico-paciente. Se há algumas décadas essa relação era confortavelmente próxima, hoje uma conjugação de fatores lança dúvidas sobre sua verdadeira natureza. O contingente de pacientes se multiplica, assim como a adoção de tecnologias cada vez mais sofisticadas. O profissional médico também mudou, moldado por um modelo de saúde que valoriza a superespecialização. E o preço da saúde, diante de tanta novidade, há tempos se mantém em alta. É o que ajuda a alimentar a crítica de que muitos planos de saúde somam um componente a mais para aumentar o desconforto na prática clínica e o distanciamento entre médicos e pacientes.

A pergunta que não quer calar é: como achar saídas para melhorar essa relação tão delicada na rotina dos consultórios?

Nada de reinventar a roda. Afinal, os caminhos estão dados pela semiologia médica – e não é de hoje.

A palavra vem do grego semeîon, sinal, e dessa associação nasce a semiologia médica como área dedicada ao estudo dos sinais e sintomas dos pacientes, a partir da coleta e interpretação dos principais achados clínicos. Galeno (139 – 199 d.C) aparece como a mais antiga referência à semiologia médica, ainda no Império Romano.

A Universidade Federal Fluminense destaca uma frase de Carl Jung para sintetizar aquilo que é central na proposta da disciplina: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas, ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”.

A essência é a anamnese detalhada e o posterior exame clínico. O modo como se examina o paciente, como se palpa, se ausculta ou se percute complementam esse universo, rodeado de simbologias e aberto a inúmeras formas de interpretação.

Assim, a semiologia médica ainda encontra o desafio cotidiano de traduzir as queixas do paciente em uma hipótese diagnóstica ou em um diagnóstico previsto nos códigos internacionais. “Não é fácil interpretar os signos da fala humana. As palavras estão carregadas de sentido, mas como abrir as portas e janelas que levam ao coração das palavras?

Como descobrir os sentidos que essas palavras fazem para as pessoas? (FRANCO, S.G., Hermenêutica e Psicanálise na Obra de Paul Ricoeur, São Paulo: Loyola, 1995, p.12)
Mais do que oferecer ao médico informações sobre a doença, a semiologia abre caminhos para desvendar questões que afligem o paciente e afetam sua qualidade de vida. É a partir da narrativa do doente que será possível traçar a análise que leva ao diagnóstico.

Naturalmente, exercitar essa escuta cautelosa pressupõe o “olho no olho”, o estabelecimento de uma relação de respeito e confiança mútua.

Mas a dificuldade de expressão, somada ao medo, à fragilidade do momento e a toda a carga emocional do paciente, por vezes dificulta o diagnóstico.

Cabe ao médico assumir um posicionamento adequado. Dedicar atenção especial aos medos e anseios do paciente e de seus familiares servirá para deixá-los mais confortáveis para expor suas dúvidas e preocupações. O resultado é um ambiente mais favorável para que pacientes e médicos coloquem mais claramente as informações a respeito da doença e das perspectivas de tratamento.

Uma das questões relacionadas à semiologia é se essa empatia do médico e a capacidade de estabelecer uma relação estreita com o paciente podem ser ensinadas. E, justamente por não haver uma regra ou resposta exata, o alerta é que a dificuldade de comunicação pode se tornar um dos maiores desafios da prática clínica.

As diferenças socioculturais entre médico e paciente e a multiplicidade de formas com que diferentes pacientes expressam a mesma doença também devem ser levadas em consideração, segundo Rilva Lopes de Sousa-Muñoz, médica generalista e professora de semiologia médica da Universidade Federal da Paraíba: “Reflexo social e corporal não são um processo exclusivamente biológico”, ressalta, reconhecendo também o reducionismo do modelo biomédico diante da complexidade da experiência de adoecimento.

A disciplina da semiologia médica procura desenvolver no aluno essa habilidade de interagir e se comunicar, dando início à verdadeira interação médico-paciente. “É necessário haver maior treinamento nas escolas médicas e até na residência. O médico precisa saber como dar notícias ruins ou até um diagnóstico potencialmente fatal”, pontua Lucíola de Barros Pontes, oncologista do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE).

Em sua formação, o profissional é treinado para tentar resolver problemas e tratar das pessoas, mas quando a doença apresenta um grau maior de complexidade, como acontece com o câncer, pode faltar certa aptidão para conduzir um diálogo franco e aberto. Para preencher essa lacuna, os cursos de educação médica continuada têm apontado a importância de revalorizar essa ligação com o paciente.

É claro que, ao lado do conteúdo aprendido na formação e da aptidão pessoal, a experiência conquistada ao longo da carreira conta pontos preciosos.
É o que garante o veterano Humberto Torloni, do A.C. Camargo Cancer Center. “O médico sabe tudo sobre a doença, mas o doente às vezes pode ensinar em uma frase algo que não foi aprendido em nenhum livro”, ensina.

Câncer na atenção primária

Não é novidade que o cenário da oncologia ainda é cercado de muito estigma. A escritora e ativista norte-americana Susan Sontag, que morreu de câncer em 2004, iluminou a questão com o clássico Doença como Metáfora, comparando patologias que ao longo da história humana despertaram igualmente reações “metafóricas”. “As fantasias inspiradas pela tuberculose no século XIX e pelo câncer hoje são reações a uma enfermidade considerada intratável e caprichosa – ou seja, uma enfermidade que não se compreende – numa época em que a premissa central da medicina é que todas as doenças podem ser curadas” (S.Sontag, Doença como Metáfora/Aids e suas metáforas, Cia de Bolso, 2007).

Ao apelar para as fantasias e para o universo simbólico, fica mais fácil compreender a complexidade em torno das questões de saúde e doença. “A doença é a zona noturna da vida, uma cidadania mais onerosa. Todos que nascem têm dupla cidadania, no reino dos sãos e no reino dos doentes”, escreveu Sontag.

Receber o diagnóstico de câncer, mesmo que de um tumor plenamente curável, pode marcar o ingresso nessa zona noturna, assumir proporções quase dantescas e afetar a maioria dos pacientes de modo devastador. Não é fácil deixar de lado o estigma e as conotações negativas associadas ao câncer.

Nesse momento, encontrar um médico apto a amparar o paciente tende a tornar tudo mais superável.

E é bom lembrar que, na maior parte das vezes, a primeira queixa do paciente é levada ao médico generalista. É nesse momento que uma escuta atenta e um bom exame físico podem fazer toda a diferença.

Na oncologia, o diagnóstico precoce ajuda a derrubar o estigma de doença incurável e demonstrar que hoje muitos tumores são passíveis de tratamento, de cronificação e até mesmo de cura.

Atenta à importância da detecção precoce, a oncologista Lucíola, do HIAE, destaca aspectos que devem ser valorizados também entre os médicos generalistas. Um bom ponto de partida é buscar a história clínica com base em algum sintoma em evolução, como perda de peso e falta de apetite.

Antecedentes pessoais, comorbidades, hábitos, vícios, faixa etária, estado geral do paciente e profissão são algumas das informações relevantes, que segundo a especialista devem ser sempre levantadas na anamnese.
“No exame clínico, em geral, a presença de febre, anemia, icterícia e ínguas é sempre importante”, explica Felipe Roitberg, oncologista do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), que lembra ainda outro importante sinal de alerta.

“A dor é sempre extremamente importante e é preciso dar atenção no sentido de aliviá-la com a maior brevidade possível”, recomenda.

Consciente do papel da atenção primária no diagnóstico precoce do câncer, o Grupo de Estudos em Semiologia Médica (GESME) da Universidade Federal da Paraíba preparou um rico material de apoio. O trabalho argumenta que os sinais de alarme para diagnósticos de câncer são mais acessíveis ao generalista e fornece bons exemplos, como sangramento retal, hematúria, disfagia ou hemoptise, além de um miniguia para a detecção do melanoma maligno. O material desenvolvido pelo GESME sublinha a importância da semiologia baseada em evidência, recomendando sempre valorizar os achados de maior acurácia diagnóstica e integrar as melhores evidências da literatura aos dados da anamnese e do exame físico. O material está disponível na internet no endereço http://goo.gl /hlOd0G.

Anamnese ideal

Como aplicar a semiologia no modelo de saúde do século XXI, quando se cobra do médico eficiência mas, contraditoriamente, se exige uma produtividade constantemente estimulada por contratos ou convênios?

Com tantas especificidades e detalhes a serem buscados, o tempo das consultas é, por vezes, um dos inimigos da aplicação da semiologia.

É possível mensurar o tempo ideal a ser dedicado a uma pessoa acometida por medo ou dor, diante da experiência do adoecimento?

Muitos médicos estimam que o tempo médio ideal de uma consulta varia entre 40 minutos e uma hora, dependendo das necessidades individuais de cada paciente e sua família. O recomendado seria a primeira consulta durar o tempo necessário para conquistar o paciente e ganhar a sua confiança.

Mas, infelizmente, a prática ainda se distancia do cenário ideal.

Rogério de Sousa Oliveira passou pela experiência negativa de receber um diagnóstico de mieloma múltiplo, em novembro de 2011. Oliveira e sua esposa se viram naquele momento diante do que descrevem como uma “linha de produção de pacientes”, em uma consulta que não chegou nem perto dos 30 minutos. Ele saiu sem respostas para seus questionamentos sobre a doença – e os procedimentos a serem seguidos foram ignorados. “No dia em que ele me passou o diagnóstico, só faltou colocar uma vela na minha mão”, conta. Mas a história de Rogério tem final feliz. Com a ajuda da IMF, a Fundação Internacional do Mieloma Múltiplo, Oliveira acabou encontrando outros médicos, recebeu todos os esclarecimentos sobre a doença e hoje mantém um blog para ecoar a mensagem da IMF e ajudar a divulgar o mieloma múltiplo numa grande rede de apoio e informação (http://goo.gl/KsMYXl).

Tecnologia: protagonista ou figurante?

O paciente oncológico sabe que exemplos bons e ruins da prática médica sempre vão existir. Mas será que ele está satisfeito com o tratamento que recebe?

A pergunta foi lançada pelo Instituto Oncoguia, em uma enquete pela internet, e até o final da primeira quinzena de dezembro registrava uma participação maior de pacientes atendidos pela saúde suplementar em relação a pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS).

A boa notícia é que quase 80% se dizem satisfeitos com o tratamento, o que não significa dizer que tudo é um mar de rosas. As críticas existem – e não chegam a surpreender. Parcela dos pacientes de câncer gostaria de receber mais explicação sobre a sua doença e se ressente da falta de atenção por parte do médico. O pouco tempo dedicado às consultas também aparece entre as maiores queixas, revelando que o contato pessoal com o oncologista costuma ser de 15 a 30 minutos.

Mas, apesar de compartilhar do cenário de dificuldades que é comum a toda área da saúde, a oncologia costuma ser apontada como um exemplo de boas práticas.

De acordo com estimativas da área de Medicina Interna e Semiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, mais de 90% dos casos oncológicos são atendidos com carinho e bastante atenção.

“Ainda bem que existem especialistas mais treinados para abordar o paciente de câncer”, diz Jamiro da Silva Wanderley, coordenador do programa de semiologia da Unicamp. O médico acredita que o fator mais limitante das conversas e da aproximação com o paciente seja – acredite – a tecnologia. “As consultas foram encurtadas pela facilidade com que os exames são solicitados hoje em dia, para que se ganhe tempo”, critica ele. Significa que a técnica acabou se sobrepondo ao contato humano, e é tempo de repensar essa equação.

No Facebook, o perfil intitulado “Semiologia médica” traz alguns depoimentos ilustrativos que corroboram essa visão: “(...) Há 30 anos, ainda existia uma forte ligação entre o médico e o paciente, quando famílias inteiras referenciavam-se em um único profissional capaz de responder a maioria das demandas clínicas. Hoje, vivemos uma crise dessa relação. A cada dia, surgem um novo avanço tecnológico e um novo tratamento. A especialidade avança com mais rapidez que o generalista. Somado a isso, valoriza-se cada vez mais o superespecialista. E existe, agora, uma grande confiança social na máquina, em detrimento do ser humano”.
Sem dúvida, os exames de diagnósticos por imagem disponíveis atualmente, bem como a biologia molecular, são aliados valiosos para a prática médica, do diagnóstico ao tratamento. Roitberg, do Icesp, reconhece esse valor, mas reforça a opinião do professor da Unicamp, enfatizando que a tecnologia deve ser uma parceira, sem que o médico seja escravizado por ela.

Alguns pesquisadores da área chegam a afirmar que vivemos uma era de transição entre dois tipos de medicina: da hipocrática, que lançou a pedra angular, para a medicina hipertecnológica. E sugerem que o método lançado pelo norte-americano Abrahan Flexner, em 1910, pode ajudar a compreender a raiz do problema, ao propor a divisão do ensino médico entre os ciclos básico e clínico. Para os críticos, a chamada doutrina flexneriana foi um passo a caminho da fragmentação do ensino médico e um estímulo à especialização precoce. Agora, o grande desafio é a busca do equilíbrio.

Em síntese, fica a lição de que uma boa formação em semiologia e em propedêutica, que é a clínica da investigação, tem vantagens que somam pontos preciosos à relação médico-paciente e ainda podem contribuir para racionalizar os custos da saúde, evitando pedidos de exames desnecessários e dispendiosos.

Mesmo que existam profissionais que enxergam as variáveis tempo e produtividade como inversamente proporcionais, o alicerce de uma boa relação entre médico e paciente baseia-se no contato visual, direto e prolongado, insubstituível por qualquer forma de especialização profissional ou tecnologia. E se na anamnese a semiologia abre caminhos
para um diagnóstico bem-feito, no seguimento do tratamento ela tem papel fundamental.

É por meio das suas expressões que o doente vai indicar reações medicamentosas ou mesmo mostrar seu desejo em relação à continuidade da assistência, por exemplo. Em resposta, o médico poderá assistir o paciente no manejo dos possíveis efeitos tóxicos e pautar o caráter do tratamento.

(“O doente por trás da doença”, de autoria das jornalistas Milena Tutumi e Valéria Hartt, publicada na Revista Onco& - Oncologia para todas as especialidades, Edição janeiro/fevereiro de 2014).

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