11 de out. de 2012

RELATO DE GIMENI ALKMIM - PACIENTE


Bom dia, hoje posto o relato de Gimeni Alkmim, de Belo Horizonte, Minas Gerais.

Grande guerreira e exemplo de superação.

Este relato também reforça minha batalha na divulgação e conscientização sobre o mieloma múltiplo.

Gimeni, agradeço a colaboração.

Abraço. 


Tenho Mieloma Múltiplo, um câncer na medula óssea. Tive meu diagnóstico ao completar 44 anos de idade, em junho de 2009, após anos sofrendo com uma anemia que me tirava toda a energia, mas  que os médicos não pesquisavam. Fiquei anos sofrendo, me sentia cansada, sem energia,  cada vez mais enfraquecida. Os médicos diziam que minha anemia era leve, não muito preocupante, e que era "coisa do meu organismo", “uma medula preguiçosa". Como eu não me sentia bem, estava constantemente indo aos médicos, com o tempo, o diagnóstico "perverso" era de paciente poliqueixosa.
 Queixas que não eram investigadas, minha médica, Clínica Geral, sugeria amigavelmente, que minha fadiga e constantes gripes, gastrites, enxaquecas, sinusites, e cansaço, eram manifestações psicossomáticas.
    Até os meus vinte e dois anos de idade, eu era outra pessoa, trabalhava, muito, fazia ballet, cuidava de minha casa, estava sempre pronta para qualquer atividade. Acordava ainda de madrugada para trabalhar, e me sentia sempre bem disposta. Aos vinte e dois anos, minha energia começou a esgotar-se. 
Lembro-me bem minha idade, pois foi quando parei com o ballet, comecei a me sentir muito cansada e  meu emprego, na época, que eu gostava muito, passou a ser um fardo para mim. Começaram então os problemas de saúde, dores horríveis no estomago, as endoscopias relatavam gastrite estomacal, esofagite, hérnia, em 1994, uma hemorragia digestiva. Aos vinte e três, sofri um aborto espontâneo, de uma gravidez não planejada, mas muito bem vinda, não tive maiores complicações fisiológicas, e as dificuldades emocionais advindas deste acontecimento, foram resolvidas com o tempo. Paralelamente, episódios de sinusite, que eram freqüentes e cada vez mais severos, em 1998 um episódio severo, que me deixou em casa, de atestado médico por uma semana, com muita febre (alta) e fraqueza. As gripes eram freqüentes, todo mês, em alguns períodos, duas vezes ao mês. Uma colega de faculdade, um dia ao se despedir, ao final de um semestre, me disse um tanto quanto incomodada: “vê se vai ao médico, suas gripes são intermináveis”. Eu ia aos médicos, eu tentava me cuidar. Eu, também, fazia análise, e ficava constrangida, não só perante a médica Clínica Geral, como também, perante a minha psicanalista, pois estava sempre doente, mas nada grave, e tudo levava a crer que era de fundo emocional, “psicossomático”. Era MUITO sofrido para mim, eu me sentia fraca, sem vitalidade, faltava energia para tudo. Preguiçosa, indolente, neurótica? Eu me sentia doente, e me sentia culpada por isto. Estaria eu, querendo estar doente, para justificar minha falta de energia, que poderia ser uma falta de vontade? Eu me sentia só, sozinha na minha fraqueza. Apenas o Gou, meu marido, via meu estado e compreendia que não era indolência de minha parte.
    No ano de 2000, comecei a sentir fortes dores nas costas, decidi que não comentaria com minha psicanalista e nem iria ao médico. Eu estava saindo de uma crise de gastrite muito forte, que mais uma vez, me levou a fazer endoscopia, tomar remédios, etc. Como dizer que eu estava como mais uma, nova dor? Fiquei sentindo a dor por uma semana, doía cada dia mais, quando eu entrava debaixo do chuveiro a dor era horrível, parecia que minha pele estava machucada. Mas eu estava decidida a não me queixar para ninguém, não agüentava mais aquele olhar de desconfiança, aqueles comentários, insatisfeitos e desconfiados, sobre minha eterna saúde frágil. Para minha sorte eu tinha uma consulta, de controle semestral, com minha ginecologista. Ao começar a consulta disse que estava bem, e que era só uma consulta de rotina, porém na noite anterior havia tido febre, que eu pensava ser uma gripe chegando. Ao me examinar, a ginecologista percebeu, entre meus seios, pequenas bolhas, que haviam surgido naquela manhã. Logo, somou as bolhas à febre, olhou minhas costas, percebeu que também tinham as mesmas bolhas, e me disse que eu estava com herpes zoster. Fui no mesmo dia a uma dermatologista, e ela me perguntou se eu não sentia dores nas costas, enfim, falei para alguém da dor, que me acompanhava fazia uma semana. Nessa época, eu já não acreditava em meus sintomas, era tanta dor de cabeça, quinzenais e em certos períodos semanais, gripes, sinusites, gastrites, eu já não acreditava em mim, tinha vergonha de me sentir tão fraca, e medo que me julgassem preguiçosa. Ficava tentando provar que não era uma pessoa indolente, me justificava por estar sempre muito cansada, e me sentia constrangida, por perceber que não tinha a mesma disposição e energia que outras mulheres da minha idade. O Gou era a única pessoa que não tinha um olhar e uma escuta crítica, diante de minha pouca energia. Em 2004, pensando estar sobre forte crise de estresse, cheguei a perder parte das sobrancelhas, os pêlos caíram, procurei outro médico – também Clínico Geral, em busca de um diagnóstico diferenciado. Este me encaminhou para uma hematologista, que na época detectou, para além da anemia, baixa de vitamina B12. Esta receitou Citoneurim (comprimidos - 2 caixas), após termino da medicação, a vitamina B12 voltou aos índices normais, e a anemia melhorou. Seis meses depois, voltei para uma consulta, taxas de vitamina B12 normais, e novamente anêmica. Quando perguntei se era normal estar sempre anêmica, a hematologista, disse ser “coisa própria do organismo”, “uma medula preguiçosa”. Tantas vezes, pensei, em frente à médica, em sugerir que solicitasse exames para dosar as proteínas no sangue, ou para investigar minha medula. Afinal, de onde vinha aquela fraqueza, se minha anemia não era “importante”, apesar de contínua? Não poderia haver outro motivo? Mas eu não sugeria, não tinha coragem, afinal, eu estava sempre com tantas queixas, que poderia parecer hipocondria de minha parte. Deste período em diante, passei a fazer consultas mais freqüentes (de seis em seis meses – e quando necessário de quatro em quatro) com minha médica de origem - Clínica Geral, para controlar a taxa de B12 e a anemia. O quadro se repetia, normalizava a B12 com Citoneurim, uso oral, e a anemia tinha pouca melhora. As dores de cabeça tornaram-se mais fortes, além de quinzenais, também, me deixavam incapacitada por três ou quatro dias, trabalhar naquela situação era um tormento.

    A caminho do diagnóstico: comigo foi assim.
    Em agosto de 2008, surgiu um nódulo submandibular. A princípio, a médica disse que provavelmente era uma glândula salivar entupida, disse para massagear e colocar compressa de água quente. Após um mês, ao perceber que o nódulo continuava como antes, ela indicou um cirurgião, este disse para não tocar no nódulo, esquece-lo, que se o nódulo não sumisse em quarenta dias, eu deveria marcar nova consulta. Após quarenta dias, não conseguindo agendar com o médico, marquei consulta com um otorrinolaringologista, ele pediu vários exames, incluindo ultra-som e hemograma. Ao ver os resultados, esse médico sugeriu que eu procurasse um hematologista, para tratar a anemia, e um outro cirurgião para verificar o nódulo. Na época, comecei a pesquisar o que poderia ser aquele nódulo, o resultado da busca de informações, pela internet, em artigos científicos, sugeria linfoma. Fiquei preocupada, só sabia que era um câncer, não tinha maiores informações. Porém os médicos que viram o nódulo não pareceram preocupados ou desconfiados de um diagnóstico tão grave. Em outubro de 2008 procurei outro cirurgião geral, este disse que o nódulo era uma bobagem. Em novembro de 2008, em consulta com outro hematologista, ele não considerou o nódulo preocupante, prescreveu Citoneurim, para aumentar a vitamina B12 e marcou retorno para fevereiro de 2009. Em janeiro de 2009, estava em férias em outro estado, e por duas vezes tive um mal estar. Como eu sempre me sentia desconfortável, já estava acostumada a ter mal estar. Em fevereiro de 2009, os índices de B12 eram bons e a anemia persistia. Além disto, eu tinha dores de cabeça cada vez mais incapacitantes, nos anos de 2008 e 2009, eu não conseguia me levantar da cama, quando vinham as crises. Elas estavam acontecendo a cada dez dias, duravam de 3 a 4 dias, também tinha sudorese noturna, que uma médica julgou ser da idade, talvez eu estivesse entrando na menopausa, e ainda tinha coceiras nas pernas, que ficavam feridas de tanto coçar. Eu já estava muito desgastada com tantos exames, muitas vezes, quando os médicos me diziam que minha “medula era preguiçosa”, aumentava minha vontade de pedir para pesquisar melhor minha medula, mas eu não fiz. O que foi uma grande bobagem de minha parte, afinal, eu não me sentia bem, estava cada vez mais fraca, sem forças, e com medo do julgamento alheio. Porém, em fevereiro de 2009, ao retornar ao hematologista, eu insisti com o médico dizendo que não considerava normal a manutenção da anemia. Uma vez que os exames mostravam que os níveis de vitamina B12 estavam normais, eles não eram responsáveis pela anemia. Também relatei a ele, que minha fadiga estava crônica, contei que quando eu ia ao supermercado, precisa dormir ao chegar em casa, não conseguia guardar as compras de tão cansada. Sentia-me exausta, inclusive, em períodos de férias. Insisti que pesquisasse minha anemia, e atendendo ao meu pedido, o médico solicitou exames laboratoriais para descartar a possibilidade de Talassemia. Os resultados foram normais e o hematologista considerou ser a anemia “coisa própria do meu organismo”. Como eu havia me consultado com este hematologista em fevereiro, guardei o pedido de exames (hemograma e vitamina B12), que ficava sempre comigo, para as consultas de controle com a Clinica Geral. Ao invés de voltar nela, naquele mês, decidi adiar mais três meses, visto que o hematologista disse que eu estava bem, e que não precisava me preocupar. Em junho de 2009, fiz exames laboratoriais, com a intenção de levá-los para controle com a Clinica Geral, mas os resultados me geraram preocupação, sabia que algo estava errado: (vitamina B12 = 2000 - dois mil; a anemia piorou - hemoglobina de 10,4 em fevereiro/2009 passou para 9,6. Ao invés de ir à médica, marquei uma nova consulta com o hematologista que havia me atendido em fevereiro. Eu disse a ele que os resultados não estavam bons e que eu estava preocupada. Ele solicitou novos exames laboratoriais, entre eles, a eletroforese de proteínas.

    O dia do diagnóstico: Quando meu marido envelheceu dez anos em uma noite.
    Quando, finalmente, tive o diagnóstico, foi numa sexta-feira no início da noite, o médico disse que não sabia precisar se era Mieloma Múltiplo ou Waldestron. Eu perguntei se era câncer, ele respondeu que sim. Acrescentando que outro médico assumiria meu tratamento. “Simples assim”. O Gou tentou conversar com o médico, perguntou a ele: “Como assim, câncer? Ela esteve aqui em fevereiro e estava tudo bem, não estava? Este câncer surgiu do nada? De repente?” O médico disse que não sabia precisar quando eu adoeci, e terminou a consulta.
    Eu e meu marido ficamos DESAMPARADOS. Eu vi nos olhos do Gou, uma dor que só me lembro de ter visto uma vez em minha vida. Foi quando eu tinha 5 anos idade e meu irmão mais velho, com 6 anos, recebeu por telefone a notícia que meu pai tinha morrido, ele havia sido assassinado. Foi a segunda vez em minha vida, que o sofrimento de uma pessoa amada, doía tanto em mim, que minha própria dor desaparecera. No momento do diagnóstico, o mais difícil foi ver o sofrimento dele, estamos casados há muitos anos, e não temos filhos, por opção, planejávamos envelhecer juntos, saudáveis, cuidando um do outro, felizes. O medo de não mais envelhecermos juntos, nos invadiu. Saímos do consultório, naquela sexta-feira, sem uma palavra de alento daquele médico, que encerrou a consulta, mesmo com o Gou tentando conversar com ele, entender o que estava acontecendo, desnorteado. Eu, sem palavras. Sem rumo, ao chegarmos em casa, o Gou chorava e dizia que não queria me ver sofrer. Eu dizia a ele que não iria sofrer, e que não morreria de câncer. Na verdade, eu estava aliviada, enfim eu tinha um diagnóstico, eu poderia ser tratada e me sentir bem, com energia. Não sei quando surgiu o mieloma múltiplo em meu corpo, não sei se todos os sintomas relatados eram sinais da doença, mas naquele momento o que importava é que eu poderia me tratar e me sentir melhor.

    A madrugada pós diagnóstico: E a resposta tranqüilizadora e humana, de uma pessoa (médica) desconhecida.
    Naquela noite não tínhamos fome, nem sono, tínhamos um momento único de consolo mútuo. Fomos buscar, naquela madrugada que seguia, ajuda na internet. Começamos a pesquisar tudo sobre mieloma múltiplo, lendo artigos científicos, e quais eram os melhores médicos / pesquisadores, através do Currículo Lattes dos mesmos. Pesquisamos sobre a doença, sobre tratamentos e prognósticos. Enviamos e-mails para médicos que publicaram sobre o assunto, junto com os resultados de meus exames. Não confiávamos mais nos hematologistas e clínicos que até então nos atendiam em nossa cidade, pois eles nunca pesquisaram “aquela” anemia persistente, nem escutaram as minhas queixas. No dia seguinte ao diagnóstico, no sábado à tarde, uma médica hematologista da Paraíba nos respondeu, o nome dela: Flávia Pimenta. Jamais esqueceremos o que ela fez por nós. Foi um momento de emoção e alívio, estávamos sem nos alimentar, sem dormir, imobilizados. Esta médica, disse para nos acalmarmos, que tinha a possibilidade de tratamento e de transplante, disse que pelos meus exames, tudo indicava que era mesmo mieloma, e não Waldestron. Choramos aliviados, alguém nos escutou.

    Outros médicos surgiram em nossas vidas: Graças a Deus!
    Dias depois, outros médicos também nos responderam. A Dra. Vânia Hungria, hoje minha amiga e minha médica, a Dra. Rosa Malena, a Dra. Mihoko Yamamoto, todas muito atenciosas comigo. Aqui em minha cidade, conheci a Dra. Nelma Clementino, com quem me consultei uma vez. Foi logo após o diagnóstico, ela colocou a mim e ao Gou no colo, nos acalmou, ficou mais de três horas conosco em seu consultório, num dia em que havia enterrado uma tia, e finalizou a consulta com um caloroso abraço. Aí conhecemos o Dr. Leandro Santiago, que foi o primeiro médico que nos acompanhou aqui, depois quando comecei a me consultar com a Vânia, ele passou a trabalhar junto com ela, escutando a voz de sua experiência.
    Ele foi muito importante para nós, pois nos conheceu em um momento de desconfiança total. Achávamos que todos os médicos eram negligentes. Leandro era firme em suas respostas, sem ser arrogante. Era humildade, carinhoso e paciente. Ele se mudou de cidade, foi difícil, pois já havia me afeiçoado muito a ele. Mas ele me deixou com o Dr. Caio Cesar Ribeiro, ele, também, é jovem. Assim como o Leandro, tem idade para ser meu filho, mas é integro e muito atencioso, tem carinho nos olhos, e é o que preciso. Caio tem a humildade para entender que a Vânia, é uma expert em Mieloma, e segue suas orientações, sem se sentir menos por isto.

    O tratamento inicial:
    Em julho de 2009, fiz o Mielograma e a biópsia, eu estava com mais de 70% de infiltração de plasmócitos. Não tive lesões ósseas, mas já estava com osteoporose na coluna lombar e osteopenia no fêmur. Comecei o meu tratamento no final julho de 2009, em três de fevereiro de 2010, fiz o transplante autologo de medula óssea (TMO). Não citarei nomes de médicos, hospitais, clínicas, enfermeiros, etc., por um simples motivo: “nunca se sabe o dia de amanhã”. Em minha primeira consulta, 45 dias pós transplante, a Vânia me perguntou como eu havia sido tratada, eu disse, “bem” (o que não era totalmente verdade), “mas que não me submeteria ao transplante, novamente, porque foi muito difícil”. Eu sabia que ainda estava muito frágil, com a saúde muito debilitada, e que poderia voltar a ser internada, e iria estar sob os “cuidados” daqueles mesmos profissionais, dos bons e dos horríveis. Realmente, precisei passar por nova internação, mas antes, contarei como foi minha internação, para o transplante.

    O Transplante autologo de Medula Óssea / TMO
    Fiz o transplante pelo SUS, por isto dividi o quarto com outra paciente, uma garota jovem, que fez transplante alogênico, para tratar uma leucemia. Quanto à estrutura hospitalar, tudo muito simples, mas com os devidos cuidados. Em sua maioria, os profissionais eram solícitos e atenciosos. O problema, a meu ver, começa pelo fato de que, quem fica na linha frente, com maior contato com os pacientes, são os auxiliares de enfermagem, pouco qualificados, insatisfeitos com o salário, com a chefia e estressados. Eles estavam, sempre, cansados, pois noventa por cento deles tinha um segundo emprego, ou estudava, e muitos faziam as duas coisas, tinham um segundo emprego e estudavam. Antes da internação, quando fui colocar o cateter, para a coleta de células, eu estava com muito medo, não sabia como seria a implantação do cateter, se era um procedimento doloroso (?), nunca havia sentindo tanto medo. Disseram que o procedimento aconteceria às oito horas da manhã. Quando, finalmente, as 14 h e 30 min., entrei para a sala de procedimento, a enfermeira discutia com o auxiliar de enfermagem do setor, apontando falhas do local e de material. Foi tão inoportuna a discussão que num determinado momento eu pedi que parassem: “olha eu já estou com medo, assim vocês estão me deixando com mais medo, por favor, me ajudem”. De repente, duas funcionárias batem na porta, dizendo que é hora de limpar o setor, a enfermeira e o auxiliar, saem da sala, e eu fiquei lá, deitada, angustiada, e com duas pessoas lavando o chão. Quando o médico chegou, fez algumas perguntas ao auxiliar, que respondeu não ser função dele, e que nunca havia auxiliado naquele tipo de procedimento. O médico disse que iria dizendo para ele o que fazer. Eu disse ao médico do meu medo, ele falou que seria rápido e faria o possível para ser indolor. Quando cobriram o meu rosto, me dei o direito de chorar, lembro-me de ter pensado que aquele era o momento mais difícil pelo qual eu tinha passado. Quando estava no meio do procedimento, entrou outro médico na sala, muito nervoso, começou a contar para o médico que já havia implantado dezoito cateteres, naquele dia. Reclamava que estava sobrecarregado de pacientes e ainda sendo pressionado pela chefia. Quando acabou o procedimento, fui para a sala de RX e depois para a realização da coleta, onde fiquei por quatro horas. A médica e as duas enfermeiras que acompanharam toda a coleta foram ótimas, em todos os sentidos. Atenciosas, competentes, atentas. Saímos do hospital as vinte duas horas, daquele dia. Quinze dias após a coleta, internei para o Transplante Autologo de Medula Óssea – TMO. Implantei outro cateter, que só foi retirado no dia de mina alta. Fui bem recebida no dia da internação, mas logo pude perceber que as enfermeiras executam, na maior parte do tempo, funções burocráticas, e que eu estaria nas mãos dos auxiliares. PRIMEIRAMENTE, que fique registrado, que meus médicos, o responsável por meu transplante, era o chefe do setor – TMO, e a médica responsável por meu tratamento, a Vânia, é muito respeitada naquele hospital. Percebi que poderia ter um tratamento mais “cuidadoso”, se com sutileza, fizesse saber quem eram os “meus” médicos. Claro que fiz isso, o que não impediu a imperícia e a negligência de alguns. No plantão da manhã, tinha uma auxiliar, que se gabava de trabalhar na instituição há quase vinte anos, ela me tratava bem, mas não tinha os cuidados devidos com a higiene. Eu não a via lavar as mãos para entrar no quarto, não usava luvas para manipular o cateter e nem usava algodão com álcool. Eu ia conversando, com muito cuidado, falando que já havia trabalhado na área hospitalar, o que é verdade, e dos cuidados com infecção, mas acho que ela era limitada demais. O pior é que o turno da manhã é a mais sobrecarregada de procedimentos burocráticos para a enfermeira, que raramente ia ao meu quarto. Algumas vezes, faltava funcionário para este turno, que é por natureza, um horário de grande estresse para funcionários e por conseqüência, para os pacientes. Existe uma rotina de procedimentos a ser cumprida, e os pacientes são enquadrados nesta rotina, independente de seu estado clínico. Se o paciente passou a noite em claro, por dor e efeitos colaterais, não é considerado. Ele deve se levantar, tomar banho, etc. Enquanto isto, as auxiliares trocam a roupa de cama, aí vem o desjejum, e lá pelas onze horas, a “calma”, volta a reinar. Caso não tenha condições físicas de tomar banho sozinho, um auxiliar irá “ajuda-lo”. Um comentário importante sobre o banho: No momento da internação nos é ensinado como deve ser o banho, recebemos um pacote com 4 ou 5 compressas (que não são descartáveis). Se lembro bem, uma para lavar a cabeça, uma para as axilas e tronco, uma para as partes intimas, outra para as pernas e pés. Estas compressas são usadas em procedimentos, limpeza de vômito, etc. Não existe a inscrição, do tipo: compressa exclusiva para o banho. Também nos são entregues dois lençóis, um para enxugar o corpo, outro para estender no chão em que vamos pisar para nos secar. Três dias antes de minha alta, uma enfermeira voltou das férias. Quando esta viu, um auxiliar estender no chão um lençol, para cobrir o vômito de minha companheira de quarto, ela disse: “Isto não pode acontecer, quem garante que a lavagem da roupa em nossa lavanderia, mata todos os germes e bactérias?” O auxiliar, perguntou qual era a opção para aquela prática que era “padrão” no Setor do TMO. A enfermeira não soube responder.
    Antes da maratona de procedimentos obrigatórios da manhã, tem a visita relâmpago dos médicos. E se mais de um médico for visitá-lo, pode ter a certeza: você não está bem. Caso contrário, você só verá o médico por, no máximo, cinco minutos, geralmente, um residente, pois o médico responsável, só entra no quarto quando a situação (o estado de saúde do paciente) requer maiores cuidados. Penso que no TMO todo minuto requer cuidado.
    No turno da tarde, trabalhava o auxiliar que estava no dia da implantação do cateter, para a coleta de células, um homem amargo, de poucas palavras, nenhum sorriso. Um dia, por volta do meu dia (D+9), eu estava me sentindo muito fraca. Tive febre durante a noite, muitas dores na região lombar e na boca, e não conseguia me alimentar devido a mucosite. Ainda não havia tido a pega de minha medula, estava num dia muito difícil e dolorido. Eu me levantei para ir ao banheiro, e este auxiliar chegou ao quarto para me dar uma medicação, via cateter. Não consegui ir ao banheiro, e cai na minha cama, desmaiei. Não sei o que ele fez, mas quando acordei outro auxiliar, o único com carinho e atenção dos três, daquele turno, estava com a mão em meu cateter, colocando a medicação, e me pediu desculpas, disse que o colega dele estava muito nervoso. Eu estava sem forças, e não perguntei o que havia acontecido. Naquela tarde, o auxiliar “nervoso” não voltou ao quarto. O pior, é que este cidadão, também trabalhava no Hospital do Câncer daquela cidade, não acho que gente “nervosa” deva trabalhar com gente SOFRIDA. Mas tinha este atende que cuidou de mim, jovem, atencioso, porém inexperiente, trabalhava como cuidador de idosos no período manhã, no TMO à tarde e estudava no curso técnico de enfermagem à noite. Eu sabia de sua inexperiência, mas ele fazia tudo certinho, com higiene e cuidado, além de muito educado. O terceiro, era um sujeito muito estranho, cursava graduação em enfermagem, ele não deveria trabalhar ali. Havia apenas cinco dias em que eu havia recebido minhas células, percebi que ele estava com a voz diferente, perguntei se ele estava gripado, o que inviabilizaria sua entrada naquele quarto. Ele disse que só estava com a garganta “irritada”. Eu perguntei se ele poderia estar ali, ele disse que não estava com ela inflamada. Mas... quando ele voltou ao quarto, estava com uma máscara, porém, no pescoço. Este sujeito estava dentro de meu quarto, quando viu pelo vidro, o Superintendente da Instituição chegando ao setor do TMO (eu o vi chegar pelo vidro da porta, e perguntei quem era). Este auxiliar colocou, imediatamente, a máscara. Naquele momento, percebi que ele sabia que estava agindo errado, e colocando nossas vidas em risco. A minha, a de minha companheira de quarto, e das outras duas senhoras, do quarto ao lado, também transplantadas. Eu não reclamei com a enfermeira, ela era muito carinhosa comigo, me tratava bem, mas não exercia nenhuma autoridade sobre os auxiliares de seu turno. Quando meu marido chegou, contei a ele, ele disse que eu deveria denunciar, mas depois concordou comigo, sabendo que no setor estava, sempre, faltando funcionário, todos correndo muito, poderiam no máximo pedir para que ele não entrasse em meu quarto. Resolvemos não arriscar, pois não sabíamos o que isto poderia acarretar, afinal, eles tinham acesso à farmácia, e tudo o que ia para mim. Este auxiliar tinha uma má vontade e uma arrogância, que fazia o turno da tarde ser pior que o da manhã. De manhã eu tinha muita dificuldade, no corre-corre das auxiliares, banho, arrumação do quarto, etc. Principalmente quando quem me dava a medicação era a auxiliar “experiente”, que não tinha os devidos cuidados, ela tinha que dar conta do serviço, e para isso, fazia tudo correndo. Mas à tarde a presença dos dois auxiliares ruins naquele turno, fazia com o tempo custasse a passar.
    O turno da noite começou triste para mim, pela situação que eu vivia, e pela falta de funcionários em minha primeira noite de internação. O Gou havia ficado até as oito horas da noite comigo, a visita era de 16 às 20 horas, diariamente. Naquele primeiro dia, ele ficou lá no hospital, o tempo todo, do lado de fora, para “garantir” que eu ficaria bem. Antes de ir embora ele me disse que estava perdido, sem saber o que fazer. Estávamos em outro estado, ele hospedado num hotel, e sabíamos que era o começo de um tempo peculiar em nossas vidas. Quando ele foi embora, me vi naquele quarto de hospital, sozinha, até a meia noite, as duas auxiliares que trabalhavam naquele turno, não puderam ir ao meu quarto. Outras duas senhoras internaram no mesmo dia que eu, além delas, tinha uma senhora, que havia feito um transplante alogênico, e estava internada com complicações. Naquela noite, a enfermeira chefe do plantão não foi trabalhar, nem o terceiro auxiliar, que deveria completar o quadro de funcionários. As duas auxiliares, que estavam sozinhas e, responsáveis pelo plantão, ficaram das dezenove horas, até a meia noite, cuidando desta paciente que estava grave. Somente depois de levá-la para a UTI, é que uma das auxiliares entrou no meu quarto, se desculpou e percebeu que eu estava chorando. Tornamos-nos amigas, sempre que era seu plantão, dia sim, dia não, ela ia para meu quarto à noite, e conversamos bastante. O plantão da noite era sempre mais tranqüilo, tinha uma auxiliar que já tinha feita quimioterapia para tratar um câncer de mama. Esta mulher era uma ótima profissional, humana, carinhosa, atenciosa. Nos meus momentos mais difíceis, devido à mucosite, ela sempre dizia saber que não estava sendo fácil, mas que eu deveria acreditar que aquele momento difícil passaria. Apenas uma auxiliar a noite era ruim, em uma noite difícil, eu havia enfraquecido muito, além da mucosite, estava tendo febre há alguns dias, já havia recebido duas transfusões, e era um momento delicado. Eu havia desmaiado à tarde, e quando esta auxiliar chegou à noite. para dizer que eu deveria ir me pesar, eu pesava três vezes por dia, nos três plantões, eu pedi ajuda a ela, pois não conseguia me levantar sozinha. Ela me disse, em um tom muito agressivo e impaciente, que deveria me esforçar, que estava sendo dengosa. Olhei para ela, e perguntei, humildemente? “Você acha mesmo, que alguém nas minhas condições consegue ser dengosa? Estou sem comer a vários dias, minha boca dói, hoje nem a morfina fez parar a dor, não consigo engolir NADA. Desmaio só de ir ao banheiro, estou usando fraldas, pois não controlo a diarréia, vomito todas as vezes que escovo os dentes, e não tenho um fio de cabelo na cabeça, o que faz com que meu couro cabeludo grude no travesseiro. Você tem certeza que estou sendo dengosa por te pedir ajuda?” Levantei, fui me apoiando na parede, até a balança, que ficava no corredor, e outra enfermeira me segurou na volta.
    Muitas são as lembranças, recebi carinho e atenção de muitos auxiliares, e enfermeiros, quando fiquei mais fragilizada, devido à mucosite, também recebi cuidados dentários (laser), e da equipe de fisioterapia para conseguir respirar melhor. As funcionárias da copa se desdobravam em cuidados e preocupação, para que eu me alimentasse, sempre disponíveis e atenciosas. Muitos funcionários do hospital, inclusive do porteiro a alguns enfermeiros de outras alas, também recebi muito carinho, o que fez com que os momentos de dor fossem suportáveis. Ah, e claro, o Gou ia me visitar, todos os dias.

    O cuidado com os outros: Mesmo que nosso momento seja difícil, ninguém tem culpa de nossos problemas.
    Algo me chamou a atenção, e fica aqui, para que todos reflitam:
   Mesmo nos momentos de medo, angústia, dor e dor forte, nunca deixei de dizer, ”por favor,”, “muito obrigada”, “você poderia fazer a gentileza”, é possível fazer isto para mim”, “desculpe incomodar, sei que está no meio da madrugada, mas...” Os funcionários do hospital estranhavam minha boa educação, diziam que não era comum serem bem tratados.
    Ninguém deve tratar ninguém com falta de gentileza, eu odeio ser tratada com rispidez, portanto não trato ninguém assim. É imperdoável, seja num hospital, na padaria, no aeroporto, etc., pessoas se tratando com grosseria.

    ESCUTA: escutar o paciente deveria ser uma cadeira, uma disciplina na faculdade de medicina, e nos cursos técnicos da área de saúde também. Certo dia, amanheci muito inchada, levantei para ir ao banheiro, e meu rosto estava redondo, bastante inchado. Eu ainda não tinha tido a “pega” medular. Quando a médica entrou no quarto, falei para ela que eu estava inchada, meus pés e mãos, também estavam inchados, mas ela olhou minha perna, apertou e disse que eu não estava inchada. Eu lhe informei que quando retenho líquido, não costumo ter as pernas inchadas, e sim, o meu rosto pés e mãos, e que eu poderia garantir que eu estava inchada. Ela não escutou, insistiu que eu não estava inchada. Mais ou menos, duas horas depois, fui para a primeira pesagem do dia, quatro quilos acima da última pesagem, na noite anterior. À tarde, na segunda pesagem do dia, mais um quilo “extra”, e a noite eu já somava, 5 quilos a mais, que na pesagem da noite anterior. No meio da madrugada, comecei a sentir falta de ar, não conseguia ficar deitada, pois não conseguia respirar, a auxiliar chamou a médica, plantonista do Pronto Socorro, esta receitou um diurético, oxigênio, e melhorei um pouco. Ao amanhecer, veio o fisioterapeuta para me ajudar a respirar, depois de quatro dias de fisioterapia, melhorei. Recebi alta ao completar dezoito dias de internação, não foi tão horrível quanto pensei que seria, mas também não foi fácil. Convivi com pessoas ótimas e com pessoas ruins. E em minha conta, até aquele momento, as pessoas ótimas eram a maioria.

    À volta para a casa: Na verdade, uma kitinete que o Gou alugou, para chamarmos de lar.
    Fui para “casa”, o Gou recebeu autorização das duas Instituições de Ensino Superior em que trabalhava, para me acompanhar. Esta liberação remunerada foi inusitada e entendida por nós como um gesto de carinho e humanidade, por parte dos dirigentes dessas Instituições. Isto possibilitou que ele alugasse um apartamento, que foi nosso lar, por setenta dias. Até chegar em “casa”, eu não tinha noção do quanto estava fraca. Eu tinha que voltar ao hospital, periodicamente, para consultas e exames, o que era muito desgastante. Em casa, quase não conseguia me levantar, meus músculos estavam fracos, levantar, assentar e deitar era muito difícil. Eu sentia dores por todo o corpo, dores que persistiram por quatro meses. Eu gemia o tempo todo, a noite era uma tortura, eu não conseguia dormir, toda posição era dolorida. Sempre que eu ia escovar os dentes eu vomitava, isto por dois meses após o TMO, a diarréia estava mais controlada, também eu quase não comia, e quando comia vomitava. Os dias foram passando, e quase um mês após minha alta, o que significava um mês e meio pós transplante, fui a minha médica, ela perguntou como eu havia sido tratada no hospital, eu disse que bem. Achei melhor não reclamar, não dizer da parte ruim, dos profissionais ruins. Eu ainda estava fraca, sentia-me muito fragilizada, sabia que poderia precisar voltar para o hospital. Se fosse internada de novo, ficaria sob os “cuidados” dos mesmos. Porém, o pior ainda estava por vir. Três dias após a consulta com minha médica, comecei a sentir uma dormência na boca, e uma dor na orelha direita. No outro dia, a dormência, que era somente no lado direito, veio acompanhada de uma dor, suportável. No terceiro dia, a dor veio intensa, de uma hora para outra ficou insuportável. A recomendação do hospital era: “qualquer sintoma diferente, telefone, para nós”. Era um sábado, telefonei para o hospital, disse o que estava acontecendo, me orientaram a ir para lá, um médico me atenderia. Contei ao médico que a dormência havia começado, lentamente, há três dias, e a dor naquele momento era intensa, porém, era um sintoma unilateral. Somente a metade do lábio e da língua estavam dormentes, e que a dor era intermitente. Era um médico residente ou acadêmico, não sei dizer, mas ele telefonou para o médico responsável, e este mandou fazer bochechos com bicarbonato de sódio. Fui para casa e fiz o bochecho, o que piorou muito a situação, pois queimou a boca, no local onde estava dormente. Passei a noite com dor e sem conseguir comer. No domingo, telefonei às sete horas da manhã para o hospital, sabia que um plantão estava começando. A enfermeira atendeu, contei a ela que o bochecho não tinha dado certo, que piorara o quadro e perguntei se podia ir até lá, para ser atendida por um médico. Ela disse que conversaria com o médico responsável, para eu ligar uma hora depois. Eu retornei a ligação, ela falou para eu tomar TRAMAL, de 8 em 8 horas, e para fazer bochechos com chá de camomila. Eu segui as orientações, mas a dor só aumentava, então, no meio da tarde telefonei, novamente, a mesma enfermeira atendeu, eu perguntei se poderia ir ao hospital, pois a dor era muito forte e eu não estava conseguindo comer. Ela disse que não tinha médico naquele momento, para eu continuar com os bochechos e que o remédio faria efeito. Às dezenove horas daquele domingo, telefonei, novamente, para o hospital, eu sabia que o plantão era outro. O enfermeiro da noite atendeu e me disse que a enfermeira do dia havia explicado o meu caso para ele, e que no dia seguinte, na segunda feira, eu deveria ir lá, para o médico me examinar. Eu expliquei que não havia dormido na noite anterior e que estava com muita dor, que não agüentaria até o amanhecer. Ele disse para tomar o remédio para dor. Eu, também, disse a ele que havia surgido uma bolha perto de minha boca, que eu suspeitava estar com Herpes Zoster. Mas ele insistiu que eu só deveria ir para o hospital no outro dia, para não tocar na bolha, e que no dia seguinte o médico me atenderia. Ao desligar o telefone, chorando de dor, meu marido sugeriu que eu levantasse da cama, e tentasse ver televisão, ou usasse a internet, para tentar distrair e esquecer a dor. Antes fui ao banheiro, olhei meu rosto e tive a certeza, eu estava com Herpes Zoster. Fui para o computador, procurei informações e mostrei para o Gou, ele também, não teve dúvida. Foi uma noite pavorosa, eu andava naquele minúsculo apartamento de um lado para o outro, chorando de dor, o Gou no quarto, levantava de hora em hora, sem saber o que fazer para me ajudar. As cinco da manhã resolvemos ir para o hospital, desta vez sem telefonar antes, como fomos orientados. Chegamos ao hospital às seis horas da manhã, eu ainda tomei o cuidado de ir de máscara, sabia que entraria em contato, com uma auxiliar que estava no oitavo mês de gestação, e com pacientes transplantados, não queria colocar ninguém em risco. Procuramos o enfermeiro do plantão noturno, ele nos mandou aguardar na sala de exames. Às sete e trinta da manhã pediram que eu saísse da sala, pois um paciente estava chegando do interior, pós transplantado, e precisava usar o oxigênio. Ele estava muito debilitado e não poderia ter contato comigo. Eu fiquei no corredor, até as onze horas da manhã, tudo o que eu conseguia fazer era chorar de dor. O Gou foi algumas vezes pedir para me atenderem, e mandavam esperar. Duas enfermeiras me viram no corredor, uma me mandou retirar a máscara, outra logo após mandou colocar. Às nove horas, passou uma médica no corredor, viu meu rosto, no momento sem máscara. Eu estava careca, com o rosto muito inchado, e machucado pelo Herpes, naquela hora, as bolhas já haviam aumentado muito. Ela perguntou por que eu chorava, o Gou explicou que eu sentia dor. Ele falou por mim, pois minha boca (língua) inchou tanto que quase não conseguia falar, minha boca tinha muitas bolhas e não abria. Esta médica foi até o setor de TMO e voltou dizendo que eu seria atendia, o que aconteceu somente às onze horas. A sensação de impotência é tão grande, que o Gou tinha pena de mim, por causa de meu sofrimento, que era a dor. Eu tinha pena dele, por causa de seu sofrimento, não poder fazer nada para me ajudar. Às onze horas fui atendida pela médica responsável, ela disse que não poderia ter chegado naquele grau do Herpes, então expliquei minhas tentativas, desde sábado para ser tratada. Ela também explicou que era um caso para internação, mas, não tinha leito disponível. Comecei o tratamento, com morfina para dor, e dois medicamentos próprios para o Herpes. Na segunda à noite, mesmo depois da última injeção de morfina, a dor era grande. Saímos do hospital às nove horas da noite, fui para casa, e fiquei a noite toda, novamente, andando de um lado para o outro, desesperada com a dor. Novamente, fomos para o hospital, chegamos às cinco horas da manhã. Fui atendida às 10 horas, para receber a primeira medicação. O médico chefe do setor chegou e o Gou perguntou a ele se havia alguma coisa que pudéssemos fazer, se havia algum medicamento que pudesse melhorar meu estado. Ele disse que se me aplicassem mais morfina poderia complicar meu transplante, o Gou disse que entendia isto, mas perguntou novamente, se tinha outra solução e o médico alterou o tom da conversa: “Meu senhor, se eu tivesse um leito a internaria, mas não tenho leito e não posso resolver esta situação”.
    A enfermeira disse para voltarmos para casa, que quando a médica responsável terminasse a reunião, ela a informaria de meu estado. Uma hora após chegarmos em casa, a enfermeira nos telefonou dizendo que a médica nos chamou de volta. Ao ver meu rosto, ainda mais inchado e tomado pelo Herpes, a médica tentou, com a ajuda de outro médico, até as quatorze horas, um hospital para que eu fosse internada. Fui encaminhada para um hospital, fiquei no isolamento até as vinte e uma horas daquela terça-feira, quando finalmente, o convênio liberou a internação, pois eu estava em outro estado. Somente às nove horas da noite pude subir para o quarto. O Gou, assim como eu, havia passado todo aquele dia sem comer nada, e o pior, em pé na recepção do hospital, que estava lotada, esperando a autorização, enquanto eu aguardava no isolamento, onde me serviram uma sopa, que não consegui comer, de DOR. Ser internada foi um alívio, eu seria tratada. Fiquei mais oito dias internada e três meses depois a dor sumiu. Até hoje, sinto o lábio um pouco dormente, mas isto não é nada. Do transplante, fui me recuperando aos poucos, voltamos para nossa cidade, setenta dias pós transplante, fui me fortalecendo, e aos poucos voltando a minha rotina.

    A recidiva: Conheci o medo da morte.
    Em janeiro de 2011, apenas dez meses após o TMO, meu pico monoclonal começou a subir. Voltei a tomar Talidomida. Este foi um momento difícil, tive muito medo, talvez pela primeira vez, desde o diagnóstico, medo de morrer. O transplante conteve o mieloma, só por dez meses, eu não sabia o grau de agressividade de minha doença, nem como meu organismo reagiria ao tratamento. Sentia-me mal, e tinha medo, muito medo, eu não sabia se sentia mal pelo efeito colateral do remédio, ou se era por causa do câncer.
    Até então, eu estava bem, comecei a sentir-me bem, cinco meses pós transplante, às vezes imagina que em uns seis ou sete anos a doença seria “reativada”, mas que aí já haveriam descoberto a cura, ledo engano. Talvez, este tenha sido o momento de maior medo, para mim. Medo real da morte, medo da falta de controle do câncer, que poderia me matar em pouco tempo. Meu pensamento era: antes todos me diziam que eu ficaria bem pós transplante, mas e aí? Eu havia feito o primeiro transplante, fiquei bem, por uns cinco meses, e era cedo demais, para um segundo transplante.
    Comecei um tratamento com Talidomida, mas meu pico monoclonal continuou subindo. Parti para a quimioterapia com Velcade + Dexametasona.
    Paralelamente, muitas coisas aconteceram em minha vida. Conheci outras pessoas com mieloma, alguns muito bem sucedidos em seu primeiro transplante, outros nem tanto. Alguns com muita fé e esperança, outros que não resistiram e infelizmente morreram.

    Aprendizados: GENTE e gente.
    O que tenho aprendido, sobre pessoas, é que: primeiro, tem muita gente “sem noção”; segundo, a solidariedade tem prazo de validade. Dá falta de “noção, vou exemplificar: Sempre achei muito estranho as pessoas irem visitar um recém nascido, logo que este chega em casa. A mãe ainda está se recuperando do parto, se acostumando com aquele novo e amado ser, e as pessoas insistem em interromper este processo. Fazem visitas, que causam desgaste físico na mãe, e pai, além de colocar me risco àquela criaturinha frágil, com imunidade ainda em construção, sem vacinas e proteção. Muitos, ainda exageram nos perfumes, cheiro de cigarro, etc. Além das gargalhadas altas, e falta de “desconfiometro”. Esta falta de noção, também acontece quando alguém perde um ente querido. Visitas intermináveis, num momento de dor, de cansaço físico e emocional, num momento em que àquele que perdeu alguém, não se sente só, pois tem a dor na “carne viva” como companheira. Com o passar dos meses, as pessoas somem, pois a obrigação social de manifestar a tal da solidariedade, já foi cumprida. Então, nada de visitas, ou telefonemas, e-mail, ou mesmo, sinal de fumaça. Depois do sofrimento da perda e do desgaste de “ter” que receber visitas de condolências, vem o vazio total. Assim, também, acontece com os que se descobrem doentes. Muitos telefonemas, muitas visitas, e depois o doente se pergunta: “com quem posso contar?”.
    Com o câncer, tem uma coisa que ainda não sei se é a tal “falta de noção”, ou perversidade mesmo, a gente escuta cada absurdo. Eu escutei, mais de uma vez, que “você sabe, câncer é uma praga, leva mesmo” Entenda-se leva como, “mata mesmo”. Quando recebi meu diagnostico, foi num período que a gripe H1N1, estava matando, era um surto sem controle, isto foi em junho de 2009. Eu estava com a imunidade baixa, e diante dos casos de gripe, a medida que as pessoas foram sabendo de meu câncer e me telefonavam, eu dizia que não estava recebendo visitas. Foi minha salvação, os telefonemas eram constantes (sempre das mesmas pessoas), claro que algumas (POUCAS), eram sinceras e ainda me telefonam. Mas a maioria queria saber sobre o estágio em que descobri a doença e quais eram as minhas chances. Algumas pessoas me ligaram, dizendo que me amavam muito, que eu podia contar com elas para o que precisasse, e eu fiquei emocionada. Com o passar dos meses, fiquei foi me sentindo idiota por me emocionar com àquelas pessoas, sem telefonemas, sem resposta de e-mail. É isto, telefonar, visitar, dizer “conte comigo”, é uma questão de função social. Mas solidariedade, AMOR, isto recebi de alguns (poucos) familiares, alguns (pouquíssimos) amigos e a todo instante, incondicionalmente de meu MARIDO, o Gou.
    Relacionamentos sejam familiares ou de amizade, eu acreditava que se sustentassem, num compromisso velado, como o matrimonio: na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza. Eu e o Gou escutamos muitas palavras “doces”, muitos falaram de DEUS, mas pouquíssimos, seguiram seus mandamentos.
    Mas, a solidão do câncer, não se restringe aos saudáveis, àqueles que não podem parar suas vidas para nos dar carinho e atenção. Percebo que os próprios pacientes, de Mieloma Múltiplo (salvo raras exceções), são pouco solidários, pouco atuantes, pouco sensíveis ao outro e não sabem o que é união, luta, “trabalho de formiga”. Todos colocam seus nomes em uma lista de contatos, dizem que querem participar de um grupo de apoio, mas não respondem aos e-mails, ignoram as tentativas de fazer um abaixo assinado para aprovação de importante medicamento no país. É estranho, porque enviam e-mails de piadas, bobagens mil, mas quando se trata de coisa séria, de nossa vida, de nossa saúde, salve-se quem puder.
    Claro que existem ÓTIMOS pacientes, poucos, mas existem. Estes são parceiros, compartilham os bons e maus momentos.

    Aos médicos: Extensivo aos profissionais da saúde.
    Em relação aos médicos, seria incrível ter um médico que me tratasse com carinho, não falo de educação, sorrisos e apertos de mão. Falo de um médico que visse meu coração, que ao auscultar meu pulmão, percebesse meus sentimentos. Achas que estou querendo de mais, né? Tudo bem, eu também já cheguei a esta conclusão. Então, por favor, que sejam competentes, tecnicamente, que não sejam negligentes comigo, nem com ninguém. Ok! Se não conseguem ser verdadeiramente carinhosos, o que seria perfeito, pelo menos, escute seus pacientes: Investiguem suas queixas e busquem um diagnóstico; Depois, amparem os pacientes no momento de dizer que eles têm um câncer incurável, diga que todo o esforço será feito para que eles vivam; E por último, esclareçam aos pacientes e familiares, sobre a doença. Retornem e-mails e telefonemas, nenhum paciente quer bater papo. Não deixe que seus pacientes fiquem constrangidos, quando precisam lhes telefonar ou enviar e-mail, solicitando informação. E, POR FAVOR: lavem as mãos antes de examinarem seus pacientes.

    Este apelo, de cuidados com a higiene, se estende aos profissionais da saúde, principalmente, auxiliares e enfermeiros.

    Certa vez, fiz uma reclamação, sobre a falta de higiene e cuidados básicos, em uma sala de infusão, e a médica responsável pelo setor me respondeu: “erros acontecem, não deveriam, mas acontecem”.

    Eu respondi: Erro em medicina é sinônimo de morte.

    Como estou hoje: Maio de 2012.
    Após alguns ciclos da quimioterapia com Velcade + Dexametasona, meu pico monoclonal voltou a subir. Outro momento tenso. Fiz uma biópsia, 40% infiltração de plasmócitos.
    Dois meses depois, novo protocolo: Velcade + Dexametasona + Ciclofosfamida. O resultado da eletroforese de proteínas demonstrou que a doença está em progressão.
    Agora estou entrando na justiça, para receber, por meu Plano de saúde, o REVLIMID, que poderá me manter viva, contendo por mais tempo a progressão do câncer.

    Não sei se viverei muito, ou pouco, não sei muita coisa.
    Neste momento em que escrevo estas últimas linhas, pouco vejo as teclas, pois não consigo parar de chorar. Às vezes reviver uma dor, é duplamente dolorido, mas tudo que aqui está relatado é minha verdade, é o que vivi. Se tiver mágoa, tristeza e sofrimento, é real, passei muitos anos, sendo a preguiçosa e “fraquinha”, depois passei a ser a doente.
    Mas tem muitas coisas boas nestas linhas, tem “aqueles” familiares que me dão amor, e estão comigo: Irmãos, sobrinhos, tios, tias, primos, cunhadas. Têm os poucos, mas verdadeiros, amigos, que telefonam, enviam e-mail e me transmitem carinho: Beth, minha amiga da faculdade, Alba e Isidoro, pais de meu aluno Felipe, que morreu com leucemia, aos seis anos de idade. As duas “Cidas”, uma técnica em radiologia, e outra secretária de minha ginecologista, sempre atenciosas comigo. A Gisa, que trabalhou comigo, quando eu era professora. A Silmara, que foi colega de trabalho do Gou, hoje, ela e a família, se tornaram nossos amigos. A Luana, o Júnior e todos da célula, que oram por nós. Fiz amigos (quase íntimos) pela internet, nuca os vi pessoalmente, mas compartilho com eles o momento mais importante de minha vida: a luta para me manter viva! Agradeço o carinho da Rosa Shirley, seus e-mails contando, deliciosamente, o seu dia e os almoços de domingo, e pelas dicas, preciosas no pós TMO. Foi minha primeira amiga virtual, também transplantada, com quem me sinto “em casa”. A Maria Carmen, professora universitária, cunhada de uma tia minha. Ela trabalhou com oncologia e sempre me deu muitas dicas, de como me cuidar. Telefona para mim, cuida de mim, e melhor: me chama de “menina”. Estou grisalha e um tanto abatida, nesses casos, menina é ótimo, né? O Imbert, de Jataí / Goiás, ele e sua mulher, Elizangela, logo se tornaram nossos amigos, e tenho aprendido muito com eles. O Bruzzi, que como não me conhece muito, parece gostar muito mim. Ah, e a Francisca esposa dele, também. São carinhosos e atenciosos comigo. Tomara que quando me conhecerem melhor continuem gostando de mim. A convivência mostra um lado, que a internet, deixa escondidinho, Rsrsrs.
    Tem o meu AMOR, o Gou, meu MARDIO, companheiro de todos os momentos, que me faz sentir que ser mulher, com ou sem cabelo, com ou sem câncer, com ou sem muitas coisas, é sempre possível.

    A possibilidade da morte parece irreal e, ao mesmo tempo, tão perto. Pensar em nunca mais ver o Gou e as pessoas que amo, causa uma dor DILACERANTE.

    Propus um pacto ao MM. Que ele fique quietinho, e viva mancinho dentro de mim. Pois se eu morrer, ele morre também.

    Peço a Deus para viver, se sou merecedora da vida ou não, é outra história. Quem sabe um dia, eu publique histórias mais antigas, escritas antes do câncer. E talvez, juntos, cheguemos à conclusão que meu querido amigo Imbert, chegou: “Então, a pergunta certa não é por que eu, mas por que não eu?”

    Gimeni.


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